A LÍNGUA DO OUTRO: JACQUES DERRIDA ENTREVISTA ORNETTE COLEMAN, 23 DE JUNHO DE 1997

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Nota do tradutor do francês, Timothy S. Murphy:1 O encontro entre o saxofonista/compositor Ornette Coleman e o filósofo Jacques Derrida documentado aqui se deu no final de junho e início de julho de 1997, antes e durante as três apresentações de Coleman em La Villette, museu e complexo para performances artísticas no norte de Paris que abriga, entre outras coisas, o renomado Conservatório de Paris. Aqui, Derrida entrevista Coleman acerca de suas visões sobre composição, improvisação, língua e racismo. Talvez o ponto mais interessante dessa troca seja a convergência de suas ideias sobre “línguas de origem” e suas experiências com preconceito racial. Esta entrevista foi conduzida originalmente em inglês, vários dias antes das apresentações de Coleman, mas, como as transcrições originais se perderam, eu a traduzi novamente para o inglês a partir do texto em francês publicado.2


Jacques Derrida: Neste ano, você está apresentando em Nova Iorque um programa intitulado Civilization [Civilização]3 – qual é a relação que isso tem com música?

Ornette Coleman: Estou tentando expressar um conceito segundo o qual você pode traduzir uma coisa em outra. Eu penso que o som tem uma relação muito mais democrática com a informação, porque você não precisa do alfabeto para entender música. Neste ano, em Nova Iorque, estou preparando um projeto com a Filarmônica de Nova Iorque e meu primeiro quarteto – sem Don Cherry –, além de outros grupos. Estou tentando chegar ao conceito segundo o qual o som é renovado cada vez que é expressado.

JD: Mas você está atuando como compositor ou como músico?

OC: Como compositor, as pessoas sempre me dizem: “Você vai tocar músicas que já tocou ou músicas novas?”

JD: Você não responde a essas perguntas, certo?

OC: Se você está tocando música que já gravou, a maioria dos músicos pensa que você os está contratando para manter essa música viva. E a maioria dos músicos não têm tanto entusiasmo quando têm de tocar sempre as mesmas coisas. Então eu prefiro escrever música que eles nunca tocaram antes.

JD: Você quer surpreendê-los.

OC: Sim, eu quero estimulá-los em vez de simplesmente pedir que eles me acompanhem diante do público. Mas noto que é muito difícil fazer isso, porque o músico de jazz provavelmente é a única pessoa para a qual o compositor não é um indivíduo muito interessante, no sentido de que ele prefere destruir o que o compositor escreve ou diz.

JD: Quando você diz que o som é mais “democrático”, como você encara isso enquanto compositor? Você ainda assim escreve música em uma forma codificada.

OC: Em 1972, eu escrevi uma sinfonia chamada Skies of America4 e esse foi um evento trágico para mim, porque eu não tinha uma relação tão boa com a cena musical; como na época em que eu estava fazendo free jazz, a maioria das pessoas pensou que eu estava simplesmente pegando o meu saxofone e tocando o que me passava pela cabeça, sem seguir nenhuma regra, mas isso não era verdade.

JD: Você sempre protesta contra essa acusação.

OC: Sim. As pessoas de fora acham que isso é uma forma extraordinária de liberdade, mas eu acho que é uma limitação. Então, levou 20 anos, mas hoje eu terei uma peça tocada pela Orquestra Sinfônica de Nova Iorque e seu maestro. Outro dia, em um encontro que tive com alguns membros da Filarmônica, eles me disseram: “Sabe, o responsável pelas partituras precisa ver aquilo.” Eu fiquei chateado – é como você me escrever uma carta e alguém precisar ler a carta para confirmar que não há nada nela que possa me irritar. Era para garantir que a Filarmônica não seria incomodada. Então eles disseram: “A única coisa que queremos saber é se há um ponto naquele lugar, uma palavra naquele outro”; não tinha nada a ver com música ou som, apenas com símbolos. Na verdade, a música que eu venho escrevendo há 30 anos e que chamo de harmolódica é como se fabricássemos nossas próprias palavras, com uma ideia precisa do que queremos que essas palavras signifiquem para as pessoas.

JD: Mas todos os seus parceiros partilham dessa concepção de música?

OC: Normalmente, eu começo compondo algo que possa ser analisado por eles, toco isso com eles e então entrego a eles a partitura. E, no ensaio seguinte, peço que me mostrem o que descobriram e podemos seguir daí. Eu faço isso com os meus músicos e com os meus alunos. Eu realmente acredito que qualquer um que tente se expressar com palavras, com poesia, com qualquer forma, pode pegar o meu livro de harmolodia5 e compor a partir dele, fazer isso com a mesma paixão e com os mesmos elementos.

JD: Ao preparar esses projetos de Nova Iorque, você primeiro escreve a música sozinho e depois pede que os participantes leiam, que concordem e mesmo que transformem o que foi escrito inicialmente?

OC: Para a Filarmônica, eu tive que escrever partes para cada instrumento, fotocopiá-las e depois ver o responsável pelas partituras. Mas com grupos de jazz eu componho e entrego as partes para os músicos no ensaio. O que é realmente chocante em música improvisada é que, apesar do nome, a maioria dos músicos usam uma “trama” como base para improvisar. Eu acabo de gravar um CD6 com um músico europeu, Joachim Kühn, e a música que escrevi para tocar com ele, que gravamos em agosto de 1996, tem duas características: é totalmente improvisada, mas ao mesmo tempo segue as leis e as regras da estrutura europeia. E, ainda assim, quando você escuta, ela tem um ar completamente improvisado.

JD: Primeiro o músico lê a trama, então traz seu próprio toque a isso.

OC: Sim, a ideia é que duas ou três pessoas podem ter uma conversa com sons sem tentar dominá-la ou liderá-la. O que eu quero dizer é que você tem que ser… inteligente, acho que é essa a palavra. Em música improvisada, penso que os músicos tentam recompor um quebra-cabeça emocional ou intelectual, de todo modo, um quebra-cabeça em que os instrumentos dão o tom. Em todas as épocas, tem sido principalmente o piano que serve como trama na música, mas ele não é mais indispensável7 e, na verdade, o aspecto comercial da música é algo muito incerto. Música comercial não é necessariamente mais acessível, mas é limitada.

JD: Quando você começa a ensaiar, tudo já está pronto, escrito, ou você deixa espaço para o imprevisto?

OC: Vamos supor que estamos tocando e você ouve algo que acha que pode ser melhorado; você pode me dizer: “Você devia tentar isso.” Para mim, música não tem líder.

JD: O que você pensa sobre a relação entre o evento preciso que constitui a apresentação e a música pré-escrita ou a música improvisada? Você acha que a música pré-escrita impede que o evento aconteça?

OC: Não. Eu não sei se isso é verdade no caso da língua, mas no jazz você pode pegar uma música muito antiga e fazer outra versão dela. O que é excitante é a memória que você traz ao presente. Quanto ao que você está falando, a forma que se metamorfoseia em outras formas, eu penso que é algo saudável, mas muito raro.

JD: Talvez você concorde comigo sobre o fato de o próprio conceito de improvisação beirar a leitura, já que o que costumamos entender por improvisação é a criação de algo novo, mas algo que não exclui a trama pré-escrita que o torna possível.

OC: É verdade.

JD: Não sou um “especialista em Ornette Coleman”, mas se eu traduzo o que você está fazendo em um campo que conheço melhor, o da linguagem escrita, o evento único que é produzido apenas uma vez é, no entanto, repetido em sua própria estrutura. Assim, há uma repetição na obra que é intrínseca à criação inicial – o que compromete ou complica o conceito de improvisação. A repetição já está na improvisação: assim, quando as pessoas querem inseri-lo entre a improvisação e o que é pré-escrito, elas estão erradas.

OC: A repetição é tão natural quanto o fato de que a Terra gira.

JD: Você acha que a sua música e a forma como as pessoas agem pode ou deve mudar as coisas, por exemplo, a nível político ou sexual? O seu papel enquanto artista e compositor pode ou deveria ter um efeito sobre o estado das coisas?

OC: Não, eu não acredito nisso, mas eu penso que muitas pessoas já viveram isso antes de mim e, se eu começar a reclamar, elas me dirão: “Por que você está reclamando? Nós não mudamos por essa pessoa que admiramos mais do que você, por que mudaríamos por você?” Então, basicamente, não penso assim. Eu estava no Sul quando as minorias eram oprimidas e me identificava com elas através da música. Eu estava no Texas, comecei a tocar saxofone e a sustentar a minha família tocando na rádio. Um dia, entrei em um lugar cheio de jogos de azar e prostituição, pessoas discutindo, e vi uma mulher ser esfaqueada – então pensei que devia sair daquele lugar. Eu disse à minha mãe que não queria mais tocar essa música porque eu pensava que estava somando a todo aquele sofrimento. Ela respondeu: “O que deu em você, você quer alguém para pagar pela sua alma?” Eu não tinha pensado nisso e, quando ela me disse isso, foi como se eu tivesse sido batizado novamente.

JD: Sua mãe era uma pessoa muito esclarecida.

OC: Sim, ela era uma mulher inteligente. Desde aquele dia, eu tento encontrar uma forma de evitar me sentir culpado por fazer algo que as outras pessoas não fazem.

JD: Você conseguiu?

OC: Não sei, mas o bebop surgiu e eu vi nele uma saída. É uma música instrumental que não está ligada a uma determinada cena, que pode existir em uma configuração mais normal. Sempre que eu estava tocando o blues, havia muitas pessoas desempregadas que não faziam nada a não ser apostar o seu dinheiro. Então me dediquei ao bebop, que estava rolando por toda Nova Iorque, e disse a mim mesmo que precisava ir para lá. Eu tinha apenas 17 anos, saí de casa e segui para o Sul.

JD: Antes de Los Angeles?

OC: Sim. Eu tinha um cabelão tipo os Beatles, isso era no início dos anos 1950. Então eu segui para o Sul e, como a polícia, os negros acima de tudo me espancaram, eles não gostavam de mim, eu tinha uma aparência bizarra demais pra eles. Eles me socaram na cara e destruíram o meu sax. Aquilo foi duro. Além disso, eu estava em um grupo que tocava o que chamávamos de “música de sopro de menestrel” e eu tentei tocar bebop, estava progredindo e fui contratado. Eu estava em Nova Orleans, fui ver uma família muito religiosa e comecei a tocar em uma igreja “santificada” – quando eu era pequeno, tocava na igreja o tempo todo. Desde que a minha mãe havia me dito aquelas palavras, eu estava em busca de uma música que pudesse tocar sem me sentir culpado por estar fazendo algo. Até hoje, ainda não encontrei isso.

JD: Quando você chegou em Nova Iorque, bem jovem, você já tinha um pressentimento do que iria descobrir musicalmente, harmolodicamente, ou isso aconteceu tempos depois?

OC: Não, porque, quando eu cheguei em Nova Iorque, eu era tratado mais ou menos como alguém do Sul que não conhecia música, que não sabia ler ou escrever, mas eu nunca tentei protestar contra isso. Então eu decidi que iria tentar desenvolver meu próprio conceito, sem a ajuda de ninguém. Eu aluguei o Town Hall em 21 de dezembro de 1962, o que me custou U$600, contratei um grupo de rhythm and blues, um grupo de clássico e um trio. Na noite da apresentação, houve uma tempestade de neve, uma greve nos jornais, uma greve dos médicos e uma greve do metrô, e as únicas pessoas que apareceram foram aquelas que tinham que sair do hotel e ir à prefeitura. Eu pedi a uma pessoa para gravar a apresentação e essa pessoa se matou, mas outra pessoa gravou, fundou sua gravadora com isso e eu nunca mais o vi.8 Tudo isso me fez novamente entender que eu havia feito aquilo pelo mesmo motivo pelo qual disse à minha mãe que não queria mais tocar no Sul. Obviamente, o estado das coisas, do ponto de vista tecnológico, financeiro, social e criminal, era muito pior quando eu estava no Sul. Eu estava batendo em portas que se mantinham fechadas.

JD: Qual tem sido o impacto do seu filho no seu trabalho? Isso tem a ver com o uso de novas tecnologias na sua música?

OC: Desde que Denardo assumiu como meu empresário, eu compreendi como tecnologia é simples e compreendi o seu significado.

JD: Você sentiu que a introdução da tecnologia foi uma transformação violenta em seu projeto ou isso tem sido fácil? Por outro lado, o seu projeto de Nova Iorque sobre civilizações tem algo a ver com o que chamam de globalização?

OC: Penso que há algo de verdadeiro nas duas coisas, é por isso que você pode se perguntar se há um “homem branco primitivo”: a tecnologia parece representar apenas a palavra “branco”, não uma igualdade total.

JD: Você desconfia desse conceito de globalização e eu acho que você está certo.

OC: Quando você considera a música, os compositores que foram inventores na cultura ocidental, europeia, são talvez uma meia-dúzia. Quanto à tecnologia, os inventores dos quais mais ouço falar são indianos de Calcutá e Bombaim. Há muitos cientistas indianos e chineses. Suas invenções são como inversões das ideias dos inventores europeus ou americanos, mas a palavra “inventor” assumiu um sentido de dominação racial que é mais importante do que a invenção – o que é triste, porque isso equivale a um tipo de propaganda.

JD: Como você pode abalar essa “monarquia”? Aliando sua própria criação às músicas chinesa e indiana, por exemplo, nesse projeto de Nova Iorque?

OC: O que eu quero dizer é que as diferenças entre homem e mulher ou raciais têm relação com a educação e a inteligência de sobrevivência. Sendo negro e descendente de escravos, eu não tenho ideia de qual era a minha língua de origem.

JD: Se nós estivéssemos aqui para falar sobre mim, o que não é o caso, eu lhe diria que, de maneira diferente mas análoga, acontece a mesma coisa comigo. Eu nasci em uma família de judeus argelinos que falavam francês, mas essa não era a sua língua de origem. Eu escrevi um pequeno livro sobre esse assunto e, de certa forma, estou sempre no processo de falar sobre o que chamo de “monolinguismo do outro”.9 Eu não tenho nenhum tipo de contato com a minha língua de origem ou com a língua dos meus supostos ancestrais.

OC: Você já se perguntou se a língua que você fala agora interfere nos seus atuais pensamentos? Uma língua de origem pode influenciar os seus pensamentos?

JD: Isso é um enigma para mim. Eu não posso saber isso. Eu sei que algo fala por mim, uma língua que eu não compreendo, que eu às vezes traduzo com mais ou menos facilidade para a minha “língua”. É claro que sou um intelectual francês, ensino em escolas em que se fala francês, mas eu tenho a impressão de que algo está me forçando a fazer algo pela língua francesa…

OC: Mas você sabe, no meu caso, nos Estados Unidos, eles chamam o inglês que os negros falam de “ebânico”: eles podem usar uma expressão que significa uma coisa diferente do que no inglês corrente. A comunidade negra sempre usou uma língua significante. Quando eu cheguei na Califórnia, foi a primeira vez em que estava em um meio onde um homem branco não me dizia que eu não podia me sentar em certos lugares. Uma pessoa começou a me fazer um rio de perguntas e eu simplesmente não acompanhei, então decidi ir a um psiquiatra para ver se eu o compreendia. E ele me deu uma receita de Valium. Eu peguei o Valium e joguei na privada. Nem sempre eu sabia onde estava, então fui a uma biblioteca e peguei todos os livros possíveis e imagináveis sobre o cérebro humano, li todos eles. Eles diziam que o cérebro era apenas uma conversa. Eles não diziam sobre o que, mas isso me fez entender que o fato de pensar e de saber depende apenas do lugar de origem. Eu compreendi mais e mais que isso que chamamos de cérebro humano, no sentido de saber e ser, não é a mesma coisa que o cérebro humano que faz de nós o que somos.

JD: Isso é uma convicção, sempre: nós nos sabemos por aquilo em que acreditamos. É claro que, no seu caso, isso é trágico, mas é universal, nós sabemos ou acreditamos saber o que somos pelas histórias que nos são contadas. O fato é que temos exatamente a mesma idade, nascemos no mesmo ano. Quando eu era jovem, durante a guerra, eu nunca tinha ido à França antes de ter 19 anos, vivia na Argélia nessa época, e em 1940 fui expulso da escola por ser judeu, como resultado das leis raciais, e eu nem sabia o que tinha acontecido. Eu só compreendi muito tempo depois, por histórias que me contavam quem eu era, por assim dizer. E mesmo em se tratando da sua mãe, nós sabemos quem ela é e que ela é de certa forma apenas por meio de narrativas. Eu tentei adivinhar em que época você estava em Nova Iorque e em Los Angeles, foi antes de os direitos civis serem garantidos para os negros. A primeira vez em que fui aos Estados Unidos, em 1956, havia placas de “Reservado para brancos” em todos os lugares e eu me lembro de o quão brutal era isso. Você vivenciou isso tudo?

OC: Sim. Nesse caso, o que eu gosto de Paris é o fato de que você não pode ser esnobe e racista ao mesmo tempo aqui, porque aqui isso não passará. Paris é a única cidade que eu conheço onde o racismo nunca existe na sua presença, é algo de que você ouve falar.

JD: Não significa que não haja racismo, mas as pessoas são obrigadas a escondê-lo na medida do possível. Qual é a estratégia da sua escolha musical por Paris?

OC: Para mim, ser um inovador não significa ser mais inteligente, mais rico, não é uma palavra, é uma ação. Como ainda não foi feito, não tem sentido falar sobre.

JD: Eu entendo que você prefira fazer a falar. Mas o que você faz com palavras? Qual é a relação entre a música que você faz e as suas próprias palavras ou aquelas que as pessoas tentam impor ao que você faz? O problema de escolher o título, por exemplo, como você antevê isso?

OC: Eu tinha uma sobrinha que morreu em fevereiro deste ano e eu fui ao seu funeral, e quando a vi no caixão, alguém havia posto um par de óculos nela. Eu quis chamar uma das minhas composições de Ela dormia, morta, e usava óculos em seu caixão. E então eu mudei de ideia e a chamei de “Blind date” [“Encontro às cegas”].

JD: Esse título se impôs a você?

OC: Eu estava tentando entender que alguém havia colocado óculos em uma mulher morta… Eu fazia alguma ideia do que aquilo significava, mas é muito difícil compreender o lado feminino da vida quando ele não tem nada a ver com o lado masculino.

JD: Você acha que a sua escrita musical tem algo de fundamental a ver com a sua relação com as mulheres?

OC: Antes de me tornar conhecido como músico, quando eu trabalhava em uma grande loja de departamentos, durante meu horário de almoço, eu me deparei com uma galeria onde alguém havia pintado uma mulher branca riquíssima que tinha tudo o que você podia desejar na vida e ela tinha a expressão mais solitária do mundo. Eu nunca havia sido confrontado com tamanha solidão, e, quando voltei para casa, escrevi uma música que chamei de “Lonely woman” [“Mulher solitária”].10

JD: Então a escolha do título não foi uma escolha de palavras, mas uma referência a essa experiência? Eu estou lhe colocando essas questões sobre língua, sobre palavras, porque, para me preparar para o nosso encontro, ouvi a sua música e li o que especialistas têm escrito sobre você. E ontem à noite eu li um artigo que era, na verdade, uma palestra apresentada em um congresso por um amigo meu, Rodolphe Burger, músico de um grupo chamado Kat Onoma. Esse artigo era construído em torno de declarações suas. A fim de analisar a maneira pela qual você formula a sua música, ele partiu de suas declarações, das quais a primeira era: “Por razões das quais não tenho certeza, eu estou convencido de que, antes de ser música, música era apenas uma palavra.” Você se lembra de ter dito isso?

OC: Não.

JD: Como você compreende ou interpreta as suas próprias declarações verbais? Elas são algo importante para você?

OC: Me interessa mais ter uma relação humana com você do que uma relação musical. Eu quero ver se posso me expressar com palavras, com sons que tenham a ver com uma relação humana. Ao mesmo tempo, eu gostaria de ser capaz de falar da relação entre dois talentos, entre dois fazeres. Para mim, a relação humana é muito mais bonita, porque ela lhe permite obter a liberdade que você deseja para você mesmo e para o outro.

(Gravada por Thierry Jousse e Geneviève Pereygne.)

*

NOTAS

(As notas que se seguem foram organizadas da seguinte maneira: em itálico, as notas de Tymothy S. Murphy; sem itálico, as notas inseridas por mim.)


[1] Esta entrevista foi lançada originalmente na revista francesa
Les inrockuptibles, n.115 (20 de agosto – 2 de setembro de 1997), p.37–40 e p.43.

[2] A tradução para o francês, realizada por Thierry Jousse, está disponível no site da revista: http://www.lesinrocks.com/1997/08/20/musique/ornette-coleman-et-jacques-derrida-la-langue-de-lautre-11232142/.

A tradução para o inglês, realizada por Timothy S. Murphy, foi publicada em 2004 na revista Genre, v.36, n.1, p.319-328, e está disponível no UbuWeb: http://www.ubu.com/papers/Derrida-Interviews-Coleman_1997.pdf.

Para a tradução para o português, utilizei a tradução de Timothy S. Murphy e recorri em alguns momentos à tradução de Thierry Jousse. Ao longo da entrevista e das notas, os trechos entre colchetes foram inseridos por mim.

[3]Ornette Coleman: Civilization” foi uma série de apresentações que Coleman realizou em meados de julho de 1997, sob a égide do Festival do Lincoln Center de 1997. Incluía performances de sua obra para orquestra Skies of America, performances em trio com Charlie Haden e Billy Higgins, membros de seu quarteto original, e uma performance de fechamento pelo Prime Time, seu grupo elétrico.

[4] O álbum Skies of America foi lançado em maio de 1972 e gravado com a Sinfônica de Londres, no Abbey Road Studios, Londres, entre 17 e 20 de abril de 1972.

[5] O livro teórico sobre harmolodia nunca foi lançado, ainda que Coleman o cite em entrevistas ao longo dos anos (http://www2.yk.psu.edu/~jmj3/p_ornett.htm, entrevista com Michael Jarrett, gravada em 1987; http://www.pointofdeparture.org/PoD6TheTurnaround.html, entrevista com Bill Shoemaker, publicada pela JazzTimes em dezembro de 1995).

Em um artigo publicado na revista Down Beat (“Prime time for harmolodics”, lançado na edição de julho de 1983 da Down Beat, p.54-55; não tive acesso à revista, o trecho abaixo foi traduzido a partir do livro The imperfect art: reflections on jazz and modern culture, de Ted Gioia, 1990, p.43), Coleman define o que seria harmolodia:

“O que é harmolodia? Harmolodia é o uso do que é mental e físico na lógica de alguém transformado em uma expressão de som para provocar a sensação musical de um uníssono executado por uma única pessoa ou em um grupo. Harmonia, melodia, velocidade, ritmo, tempo e frases têm todos um mesmo lugar nos resultados que advêm da inserção e do espaçamento de ideias. Essa é a ideia e a ação da harmolodia.”

Em uma entrevista concedida a Michael Jarrett em 1987 (http://www2.yk.psu.edu/~jmj3/p_ornett.htm), Coleman desenvolve algumas de suas ideias sobre música, citando o livro sobre harmolodia:

“Coleman: Em música, você tem algo chamado som, você tem velocidade, você tem timbre, você tem harmonia e você tem, mais ou menos, as decisões. Na maioria das músicas, as pessoas que tocam o que chamo de música padrão, elas só usam uma dimensão, isto é, a nota e o tempo. Enquanto, digamos, estou tendo esta conversa com você agora. Eu estou falando, mas estou pensando, sentindo, cheirando e me movendo. Ainda assim, estou me concentrando no que você está dizendo. Então isso significa que há mais coisas acontecendo no corpo do que apenas a coisa presente que a pessoa percebe que você está fazendo. Quer dizer, você está me entrevistando, contudo, estou fazendo mais do que apenas falar com você. E o mesmo se dá com você.

Para mim, a existência humana existe em um nível múltiplo, não apenas em um nível bidimensional, não apenas precisando ser identificada pelo que você faz e pelo que você diz. Essas coisas são resultado do que as pessoas veem e ouvem você fazer. Mas os seres humanos vivem em um nível múltiplo. É assim que eu sempre quis que os músicos tocassem comigo: em um nível múltiplo. Eu não quero que eles me acompanhem. Eu quero que eles acompanhem a si mesmos, mas que estejam comigo.

(…)

Eu escrevi um livro teórico chamado Harmolodics [Harmolodia]. Eu descobri que podia traduzir as claves em um som. Por exemplo, se você está atrás de uma porta fechada e eu ouço a sua voz, eu sei que é você sem ver o seu rosto. Mas, imagina, se o som é tão identificável – mais do que o seu rosto –, isso é fantástico, não é?

Eu descobri que cada pessoa tem o seu próprio dó móvel [segundo o Harvard concise dictionary of music and musicians, 1997, p.437, em tradução minha: “Um sistema de solmização em que a sílaba ‘dó’ representa o primeiro grau da escala maior independentemente de sua transposição, sendo, portanto, ‘movível’ para qualquer tom.” Quando se canta “dó”, pode-se estar cantando um : a nomenclatura musical não define a frequência do som e, logo, não define a nota executada. Desse modo, nessa técnica de solfejo, a nota a ser chamada de “dó” depende do contexto escalar onde está aplicada.]. Quando você coloca o seu som ou a sua ideia em uma arena misturado a outras coisas – se o que você está dizendo tem um lugar válido –, ele encontra sua posição nesse todo e faz dessa coisa algo muito melhor. Você não precisa se preocupar em ser um número 1, um número 2 ou um número 3. Números não têm nada a ver com posicionamento. Números só têm a ver com repetição.

Era isso que eu estava tentando dizer quando falávamos sobre som. Penso que cada pessoa, quer ela toque música ou não, tem um som – seu próprio som, essa coisa da qual você está falando. Não se pode destruir isso. É como energia. Seu som, sua voz, significa mais para todo mundo que te conhece do que a sua aparência amanhã. Você pode deixar a barba crescer ou raspar o cabelo. As pessoas dirão: ‘Não te reconheço.’ Mas assim que você começa a falar: ‘Ah, é você!’ É a mesma coisa. Se é tão distintivo, deve haver algo aí. É maravilhoso como todo mundo tem seu próprio som. Só atores tentam encobrir isso – quando imitam alguém –, mas então eles estão imitando o som.”

[6] Colors: live from Leipzig, álbum de Coleman e Joachim Kühn, lançado em 1997 e gravado no 20º aniversário do Leipziger JazzTage, na Ópera de Leipzig, Alemanha, em 31 de agosto de 1996.

[7] Nota-se que Coleman raramente opta por inserir o piano na formação de seus grupos. Nas formações dos seus álbuns, o piano só aparece em: Something Else!!!!, álbum de estreia de Coleman, lançado em 1958, com Walter Norris no piano; Sound museum: hidden man e Sound museum: three women, ambos de 1996, com Geri Allen no piano; e no já citado álbum com Joachim Kühn, Colors: live from Leipzig, de 1997.

[8] Town Hall, 1962, álbum de Coleman lançado em 1965 e gravado em 21 de dezembro de 1962, no Town Hall, em Nova Iorque.

[9] Jacques Derrida, O monolinguismo do outro – ou a protése de origem, Porto: Campo das Letras, 2001.

[10] Lançada em 1959, no álbum The shape of jazz to come.

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/// tradução e notas de vinícius gonçalves melo / revisão de thadeu c santos

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